terça-feira, 26 de agosto de 2008

Com o gosto de pênis na boca

Escrevi a matéria abaixo para o fanzine Coringa! de Bárbara Miller, de Blumenau.
Para quem se interessar pelo resto da revista, deixe seu e-mail nos comentários que eu lhe enviarei uma cópia. Ajude a espalhar esse material tão bem elaborado por pessoas que realmente se interessam pela arte!
Quanto a este blog, volta à ativa após um período áspero de dúvidas e falta de criatividade.





Com o gosto de pênis na boca

Lembro-me de frases suas que vou saborear à noite. O gosto do pênis dele ainda está em minha boca. Minha orelha arde de suas mordidas. Eu quero encher o mundo com Henry, com seus bilhetes diabólicos, plágios, distorções, caricaturas, tolices, mentiras, profundidades.


O trecho acima foi retirado do diário da escritora Anaïs Nin, escrito na década de 30, sobre o seu amante, o bordeleiro escritor, Henry Miller (contemplado na primeira edição de Coringa!).
Eu já havia ouvido falar de sua sofisticada obscenidade durante a faculdade, mas li um de seus livros, Uma espiã na casa do amor (1954), e me decepcionei com sua pena meia-boca, mais para brocha do que firme madeira. Eu que adoro um tabuísmo, uma querela, um palavrão em meio a uma conversa de comadres, só encontrei um medroso erotismo, um estilo não desenvolvido, uma tentativa de ser escritora.
Em seguida, fui questionar a professora que havia me inclinado a gastar minha cota de esperança com aquela leitura. E ela disse que o que havia mesmo de brilhante em Nin era seus diários, mas que, infelizmente, eles ainda não haviam sido traduzidos do francês. Assim, como o meu conhecimento lingüístico era – e é – reduzido, aquele cabedal estava fora de alcance.
Na época, pensei que tanto fazia ler ou não, porque eu achava que aquela mulher não poderia me impressionar muito. Mas, há alguns meses atrás, me deparei com um livrinho preto na livraria: Henry & June, a versão pocket (e em português!) dos diários não-expurgados de Anaïs Nin. Não resisti. Ali estava contido tanto mistério de perfeição no meu imaginário que tive de arriscar e torrar o resto do meu salário naquela expectativa.
Eu precisava desesperadamente de alguma coisa que inspirasse o meu próprio livro, que estava minguando (desculpe, leitor, esse meu jornalismo autoral, mas não me afeiçôo à terceira pessoa) e, naquela mesma noite, me deitei na cama e comecei a ler:

Paris, Outubro de 1931

Meu primo veio a Louveciennes ontem. Conversamos durante seis horas. Ele chegou à mesma conclusão que eu: preciso de uma mente mais velha, de um pai, um homem mais forte do que eu, um amante que me conduza ao amor, porque tudo o mais é uma coisa autocriada.

Meu lápis correu o texto todo. Queria-o para mim. Destacado, para que eu não o esquecesse. E anotei na margem um “R”, que significa que usarei no meu romance. Anaïs Nin colocou o pinto na boca e eu desci o mesmo cacete no teclado por páginas e páginas. E não há nenhuma leitura melhor para um escritor do que aquela que o faz escrever!
Porém, não é o tesão de Nin que excita seu leitor e, sim, a forma como ela se embriaga com a vida. Até não conseguir mais levantar, até ser pura histeria, até ser só palavra.
Anaïs começou seu famigerado diário aos onze anos, escrevendo cartas, que nunca enviou, para seu pai, que deixou a família nesse período. A partir daí, nunca parou de registrar, praticamente todos os dias, sua vida em um amontoado de manuscritos que somaram 35 mil páginas até o final de sua existência.
Anaïs escreveu, e existiu, durante as descobertas psicanalíticas e foi discípula delas. Inclusive, chegou a afirmar que possuía um relacionamento incestuoso com seu pai e que, talvez, por isso, nunca tenha tido sucesso em uma vida amorosa estável. Mas esse fato é embaçado e não se sabe se ela falava a verdade ou fantasiava sobre o homem que a abandonou. Dentro deste assunto, um dos momentos mais interessantes do livro é quando a escritora faz análise com um psicanalista. A apreciação sobre a vida da francesa deixa o leitor com pena dela e é lhe retirada a carga de julgamento sobre a infiel esposa. Anaïs ganha aliados.
Também foi precursora da revolução sexual, que sempre teve dentro de si, desde a tímida, medrosa, porém curiosa garota do começo dos diários. Entretanto, diferentemente de Sylvia Plath, que era uma mulher sufocada pelas exigências de seu tempo (ser mãe, e trabalhar, e ser esposa), e que, por isso, não suportou a realidade, Anaïs só se deixou asfixiar por suas paixões. A escritora foi profundamente extirpada de seu status quo, de criação católica e puritana, quando conheceu Henry Miller em dezembro de 1931. O pornógrafo-filosófico intelectual mudou sua vida para sempre e o seu gosto ficou mesmo na boca de Anaïs, pois até sua linguagem escrita muda, após o encontro. Antes, ela, que mal descrevia cenas de sexo e que nunca tratava de obscenidades com as palavras de uma puta, começa a prostituir seu vocabulário com o incêndio de Miller. Em verdade, o escritor desperta uma Anaïs adormecida, uma sempre intrigada mulher que, finalmente, descobre uma possibilidade de vazão.
Anaïs mostra o diário a Henry que descreve sua atividade da seguinte forma:

...você é narcisista. Esta é a raison d’être do diário. Escrever um diário é uma doença. Mas está tudo bem. É muito interessante. Eu não sei de outro diário mais interessante. Não conheço nenhuma outra mulher que escreva com tanta franqueza.
(Frase de Henry, citada nos diários de Anaïs)

A escritora era mais corajosa e franca do que se imaginava ser e esse é o motivo de seus diários serem tão afamados, pois não eram bons apenas por serem um fluxo sem freios de seus sentimentos e angústias, até mesmo porque esse derramar não foi tão inconsciente assim. Pois, de tempos em tempos, a francesa mostrava seus manuscritos para amigos ou amantes e, em 1920, John Erskine disse a ela que aqueles escritos eram sua melhor literatura e, então, ela começou a pensar sobre publicá-los, o que fez após a morte de seu riobáltico marido, que era o único que não sabia que, fora da jagunçagem, Anaïs era algo totalmente diferente.
A escritora tinha uma força tão grande para esse abismo de nunca se satisfazer que chegou a encontrar-se, num mesmo dia, com um amante, depois outro e depois com seu marido. A princípio, sua consciência, ainda com o ranço da culpa católica de berço, tirava-lhe o sono, mas com o passar do tempo, Anaïs vivencia o que seria a evolução de uma dor moral para a libertação de qualquer preocupação. Aos poucos, descreve ela, mentir para seu marido se torna uma atividade normal e ela se junta ao tipo de Miller, de June, e isso é encontrar-se. Isso é, finalmente, justificar-se.
E quem pode imputar-lhe culpa? Não será o seu próprio diário, leitor, tão manchado de esperma, grudando as páginas, quanto o dela?